A Interpretação do Mal

A Interpretação do Mal

Só experimente personagens maus se estiver realmente preparado para isso. Ou seja, só jogue com personagens maus se você tiver plena consciência de que a realidade e RPG são coisas completamente diferentes. Se você acha que assaltar um banco é divertido no RPG e não vê maldade nenhuma em tentar isso de verdade “qualquer dia destes”, é melhor parar por aqui e procurar uma leitura mais saudável e singela – como “O Pequeno Príncipe”, por exemplo. Usuários de camisa de força também deveriam seguir o mesmo conselho, pois ambos têm muito em comum…

Pensando nas pessoas normais e sensatas, foi pensado que seria interessante se aprofundar mais no tema e fornecer algumas idéias; ferramentas  para que aqueles que pretendem interpretar personagens malignos possam fazê-lo de maneira eficiente.

Bem e Mal

Maniqueísmo. Doutrina do persa Mani ou Manes (séc. III) sobre a qual se criou uma seita religiosa que teve adeptos na Índia, China, África, Itália e sul da Espanha, segundo a qual o Universo foi criado e é dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus, ou o bem absoluto, e o Diabo, ou o mal absoluto. Resumindo, o maniqueísmo diz que existe apenas o bem e o mal, sem meio-termo. É o famoso preto no branco, sem tons de cinza. O que não é bom é mau, e vice-versa. Ponto.

Sabemos que a realidade não é assim. Não é como nos quadrinhos de super-heróis ou desenhos animados, onde cada um precisa necessariamente ser heróis ou vilão, “do bem” ou “do mal”. Não existem pessoas totalmente boas ou totalmente más – todos temos um pouco de ambos. Na vida real, mesmo as pessoas mais sacanas tem algo de bom. Só para citar um exemplo, um dos maiores assassinos seriais dos EUA também trabalhava como palhaço, animando crianças em hospitais.

Claro que isso é vida real. Na ficção, nem sempre precisamos – ou queremos – ficar presos à vida real. Em filmes, quadrinhos e RPG, o maniqueísmo é amplamente utilizado; uma forma fácil e confortável de dividir todas as forças e criaturas em dois times.

Maniqueísmo e RPG

Em jogos modernos – como Street Fighter RPG – não percebemos tanto a presença maniqueísta. Claro, você sabe exatamente quem são seus inimigos (a Shadaloo, a Iluminatti…que seja), mas há exceções.

Em Street Fighter RPG, mesmo entre os capangas da Shadaloo, tem aqueles que trabalham para Bison por medo, chantagem ou por não terem outra opção. Quem leu o excelente fanfic Apenas o Necessário sabe do que estou falando. Na história, o personagem principal é um torturador. Sim, isso mesmo, alguém que tira informações de outras pessoas através da dor que lhes causam. Ainda assim, ele não é alguém completamente mau e possui inclusive um próprio código de conduta, como não torturar crianças, por exemplo.

Jogos mais antigos normalmente são mais maniqueístas. Seu tema sempre é a luta do bem contra o mal. Para seus jogadores existem apenas personagens heróicos, que lutam pelo bem. Personagens malignos são proibidos aos personagens jogadores: eles serão sempre antagonistas, e apenas o Narrador pode controlá-los.

Mas por quê? Afinal, se o maniqueísmo não corresponde à vida real, por que cargas d’água um jogador consciente não pode ter um personagem maligno?

O Mal é Encrenca!

Narradores costumam proibir personagens jogadores malignos, geralmente baseados com conselhos dos próprios livros de RPG. Mas, além dos problemas sobre estar ou não preparado para isso, alguns não conhecem exatamente a razão. E não se trata apenas de ser bom ou mau, certo ou errado. Trata-se de prejudicar a aventura – e isso vale para qualquer jogo.

Um dos maiores problemas de um Narrador é manter o grupo unido em um objetivo comum. Sim, claro que ele tem poder para isso (“Vocês VÂO seguir naquela direção porque NÃO TEM outro caminho!”). mas se abusar desse poder os jogadores vão se sentir privados de sua livre escolha – e acaba a diversão.

Provavelmente vocês já entenderam o recado. Personagens heróicos trabalham juntos, colabora entre si, têm objetivos comuns (destruir a Shadaloo, proteger os fracos e inocentes, eliminar o mal…). Personagens malignos só pensam no próprio bem-estar, só estão interessados em seus próprios objetivos, e danem-se os outros. Então, obviamente, é muito mais fácil para o Narrador conduzir uma aventura apenas com personagens do bem.

Então, o segredo para jogar com um personagem maligno é: colabore com o Narrador.

Objetivos Iguais

Se um Street Fighter é bom ou mau, isso não importa tanto para o Narrador. Importa, isso sim, se ele tem interesses e objetivos iguais ao resto do grupo.

Mas como um cara mau poderia querer a mesma coisa que um time de caras bons? Por que meu ninja assassino e impiedoso deveria se importar em destruir uma base da Shadaloo? Porque meu kickboxer traficante ajudaria a resgatar um colega de time?

A primeira coisa é esquecer os estereótipos de vilões dos quadrinhos e desenhos animados – aqueles que estão sempre tentando destruir ou atormentar os heróis, sem motivo nenhum, mesmo que não saiam ganhando nada com isso. Patético! Só porque você é um cara mau, não quer dizer que PRECISA combater ou destruir os caras bons (a menos que eles interfiram com seus planos, é claro). Na verdade, mesmo sendo mau, você ainda pode ser um companheiro fiel e prestativo.

A chave é dar ao personagem maligno um motivo, uma razão para andar com os caras bons. Digamos que seu ninja assassino é um espião contratado para se infiltrar entre os heróis, conseguir sua lealdade e depois sequestrar um deles para seu clã? Um bandido infiltrado como esse faz exatamente o contrário do que se espera de alguém maligno: tenta ser legal, ajuda sempre que precisa, e pode até salvar a vida de seus “companheiros” se a chance aparecer. Tudo para ganhar a confiança de todos…até o momento final, quando você revela seu verdadeiros objetivos. Faça tudo direitinho e você se diverte, o Narrador ganha mais material para trabalhar a aventura, e os outros jogadores ganham um clímax e uma surpresa extra naquela missão que parecia ter sido bem sucedida.

Não tão mau assim…

E já que estamos mesmo fugindo do maniqueísmo, uma outra idéia seria dar ao seu personagem maligno um “lado bom”.

Como fazer isso? Talvez você seja um assassino mercenário contratado para matar o grupo, mas acabou se apaixonando pela linda amazona que acompanha os heróis – ele não  ficou bonzinho de repente, mas encontra-se em um dilema e por enquanto vai colaborar. Ou talvez você seja um lutador honrado, um vilão de palavra, e teve a vida salva por um dos heróis; agora existe uma dívida de honra, e você precisa acompanhar o time até ter a chance de devolver o favor.

Nestes casos, não haveria problemas em ser um cara mau – basta que não seja totalmente mau. Você pode ser um Street Fighter egoísta buscando seu bem estar acima de qualquer coisa (e tem coisa melhor do que andar com um grupo de Street Fighters que podem ajudá-lo com seus inimigos a qualquer hora?). Ou você pode ser alguém maligno mas preso a um código de honra. Você geralmente não mente, cumpre suas promessas e salda suas dívidas. Evite apenas personagens cruéis e totalmente maus, vilões até os ossos, e não tem absolutamente NENHUM motivo para concordar ou colaborar com os heróis. Guarde estes personagens para os vilões de verdade.

Jogadores e Narradores experientes e conscientes não encontram problemas em usar personagens malignos – especialmente quando eles acrescentam algo à crônica e não atrapalham o time. Tudo depende da habilidade e boa vontade de todos. Mas uma coisa deve ficar claro: que ninguém se atreva a esfregar esse artigo na cara do Narrador para que ele autorize personagens malignos. Não importa se ele o faz por razões morais, pessoais ou práticas: o Narrador sempre tem a palavra final.

* Este artigo é uma adaptação de um artigo homônimo de autoria de JM Trevisam e Marcelo Cassaro, publicado originalmente n extinta revista Dragão Brasil #54.